Taco de beisebol, facão de cortar cana, cacetada • O lanche do Jacaré • Jacarés nos desenhos animados e sentimentos contraditórios • Os mais tocados na Oficina: Tião Carreiro
Leia o Jacaré de Oficina 01, clicando aqui.
Sem mais delongas, Jacaré de Oficina.
Logomarca da oficina mecânica Jacaré, de Boa Esperança, MG. Deve ser um desenho norte-americano, no qual foi acrescentado o alicate de pressão, não achei o original.
Taco de beisebol, facão de cortar cana, cacetada. Vi o adesivo na traseira do carro branco, da janela de um ônibus. Carro e ônibus parados no semáforo. O carro, um sedã - sorry, é o máximo que consigo descrever do automóvel, sou péssimo para identificar modelos lançados depois de 1985. Na traseira o adesivo, no adesivo a ilustração e a legenda-título:
“Não toque no meu carro”. Se eu soubesse que relar a mão no capô no carro do vizinho geraria essa reação, uma paulada com um taco, eu nem olharia na direção dele. Mudaria de calçada. Quem sabe até de cidade.
Uma mensagem de horror. Horror a qualquer ser humano, com alguma intenção, boa ou má, que possa abrigar no coração, no delito imperdoável de se aproximar de um carro e com ele interagir de alguma forma. Como, por exemplo, colocar um folheto no limpador de parabrisa.
Ou uma dessas pessoas que, coitadas, se oferecem para limpar o parabrisa, jogando uma água um pouco menos poluída que a do rio Tietê, tacando rodinho e pano para proceder à limpeza do vidro.
Eu pergunto: merece uma tacada de beisebol somente por isso?
“Ah, seu tonto, o adesivo se refere a quem quer roubar o carro”. Será mesmo? A legenda diz “não toque no meu carro”. “Tocar” é, como dizemos por aqui, “relar a mão”, colocar a mão de leve. Para roubar não basta tocar, você tem que mexer, arrombar, forçar as portas, arrebentar com vidro.
“Tocar” no sentido mais comum é verbo para ações de leveza, sutileza, graça. Dizemos “tocar” quando alguém “mexe de leve” com o seu coração. Não me parece um verbo adequado para falar de um arrombamento.
“Não toque no meu carro” na minha cabeça é similar a “não toque na minha filha” ou “na minha mulher”. O que mostra o quanto o brasileiro preza tanto a filha e a mulher quanto o carro. Ou seria o contrário? Embora eu nunca tenha visto nenhum adesivo do tipo na filha de ninguém, nem na mulher. Mostra então que o brasileiro preza, na verdade, mais o automóvel do que os membros do sexo feminino de sua família.
Ou seja, não toque na minha filha, mas se tocar, a gente dá um jeito. Se tocar no carro, você vai levar porrada.
“Ah, seu tonto, você leva as coisas muito a sério, a ideia é ser engraçado, é pra dar risada”.
Tonto, pergunto: seria por causa do uso dos bonecos de sinalização internacional de trânsito?
A linguagem visual dos bonecos de sinalização, utilizados no trânsito desde o início do século XX, destina-se a evocar o mais básico da representação de um ser humano. A relação mais óbvia é com o “boneco de palito”, em inglês stickman, desenhado por crianças e adultos que não sabem desenhar, em quase todo o mundo.
A ideia era facilitar a identificação de uma pessoa, sem entrar em detalhes sobre sexo, idade, essas coisas. Não tinham como objetivo serem engraçados. Um boneco desses numa placa de trânsito queria dizer: “proibida a travessia de pedestres”. Ou melhor, “não atravesse, aqui não pode!”
Mas hoje são utilizados em memes, em vídeos como os da séria “Animator x Animation” de Alan Becker, assim como em “n” lugares para fazer piada.
O logo do canal de humor “Porta dos Fundos” também vai por aí.
Usar uma linguagem utilitária de sinalização, mas também associada com algo infantil, pela relação com os bonequinhos de palito, torna engraçada qualquer declaração visual que pretende fazer rir?
Não sei, para mim isso só desqualifica ainda mais a legenda, a cereja do bolo da mensagem.
No caso do nosso adesivo (nosso? eu, hein), talvez a ideia fosse provocar um riso de macheza. O proprietário do carro e sua troupe riem juntos, declarando algo como “não mexa comigo, que você vai sair machucado, ou morre”. Uma cantada de galo. Um canto de gorila batendo no peito, por meio de um adesivo, e a alegria que vem de tudo isso. Um riso com a crista levantada. Um macho-alfa gorila com um adesivo na bunda.
Talvez isso seja engraçado para muitas pessoas. Nenhuma delas, graças a Deus, faz parte da minha mesa do happy hour da sexta-feira. Mas, pensando bem, na última sexta-feira não tinha ninguém lá. Nem eu.
Caí na besteira de pesquisar na internet. Achei versões piores, com a descrição:
Adesivos de carro moda engraçado decoração estilo do carro acessório não toque no meu carro
Sim, as pessoas acham engraçado a representação de outras pessoas sendo espancadas por alguém que defende sua propriedade. Como diz Tião Carreiro, “mundo véio tá perdido…”
Poderia dizer que um filme dos Três Patetas tem o mesmo tipo de violência. Tá, mas somente para ficar no exemplo deles, sabemos que são três atores, três palhaços de circo numa pantomima filmada. É tudo de mentirinha.
A dissolução dos limites entre realidade e representações artísticas, no mundo moderno, está causando alguns probleminhas. Não sei se os defensores do conceito “Tudo é Arte, principalmente a Vida” estavam pensando nisto, quando propuseram a tese estapafúrdia. Ou sei lá, talvez tenham pensado sim, para causar confusão mesmo. Pensar que, de jogar tortas na cara das pessoas em praça pública chegaríamos a espancar supostos ladrões de carros com tacos de beisebol em praça pública.
Além da mensagem motivacional, senti confusão quando vi o adesivo por causa do taco de beisebol. Não um pau, borduna ou bordão, cacete, bastão de mão, porrete, panca (para dar uma pancada, você precisa de uma panca). Nem um facão daqueles de quebrar coco, ou facão de cortar cana, para mim muito mais ameaçador que um bastão de beisebol.
Nada contra a cultura norte-americana. Mas convenhamos, um taco de beisebol não é fácil de encontrar por aqui, a não ser num adesivo ou num filme da Netflix. Seria bem mais comum achar um facão como o do “Caipira Picando Fumo” há alguns anos por aqui. Talvez ainda seja. Ou uma faquinha de picar fumo, tenho visto jovens fumando palheiros, embora não tenha visto nenhum picando fumo.
O facão que Almeida Júnior colocou na mão do caipira na pintura icônica é o símbolo extremo da desconfiança do caipira em relação a estranhos. Vejam que ele está na frente de casa, com uma faca deeeeeeeste tamanho para prover de tabaco o seu pito. Precisava ser deste tamanhão? Não precisava. Meu avô fazia isso com uma faquinha umas quatro vezes menor. Meus tios, e vizinhos, também.
E este outro caipira? Neste quadro, a “Amolação interrompida”. O forasteiro ousa cumprimentar o caipira, e ele responde. Mas com o machado na mão, “no jeito”, pronto para qualquer coisa.
Transporte as figuras para uma Belina véia, em pleno século XXI, numa avenida de cidade do interior, e eu vejo o machado e a faca de picar fumo transfigurarem-se em um facão de cortar cana.
O facão de cortar cana, aqui na cidade, por sermos pólo produtor de cana-de-açúcar, há mais de 100 anos, tornava comum a presença da ferramenta como arma de defesa pessoal. O facão de cortar cana era o nosso nunchaku, a nossa Colt 45. No período em que eu era criança, até o fim da adolescência, meu pai levava um no carro. Eu morria de medo que houvesse alguma briga no trânsito, em que ele quisesse sacar a ferramenta do bolso lateral da porta do motorista. Espanhorzinho esquentado! Graças a Deus, nunca quis, ou precisou.
Penso que as tradições devem ser mantidas. Porém, facões de cana não são mais necessários: além de ter sido cientificamente provado que não dá para assobiar e chupar cana ao mesmo tempo, parar na estrada pra roubar cana pra chupar dá diabetes.
Para manter as tradições, portanto, defendo que cada família do interior leve um suprimento de pamonhas de Piracicaba no carro, toda vez que for sair. Pra uma emergência, vai saber.
Talvez um adesivo “Sou um Pamonha de Piracicaba”, contrapondo-se à violência do “Não toque no meu carro”.
Amigos vão dizer: “eu sempre soube disso. Resolveu sair do armário?”
Em tempo: não pense o leitor ou leitora que defendo o uso dos facões de cortar cana no lugar dos tacos de beisebol.
Não dá, as bolas iam ficar todas cortadas.
O lanche do Jacaré. Os sanduíches são chamados de lanches, aqui no interior de São Paulo. Pelo menos assim é assim que pedem na lanchonete da rodoviária os de Terceira Idade e os que estão caminhando para ela, como eu.
“Se não fosse lanche, não seria lanchonete”, raciocionam.
Os mais novos chamam os lanches de sanduíches. Acariocados e globalizados chamam de sanduba. Acho artificiais esses carioquismos na boca de gente do interior paulista.
“Vamos comer um Méqui?” além de ser filisteu, na boca de um homem de 50 anos, é um convite idiota, para quem não sabe o que é comer de verdade, que prefere comida de criança birrenta, com gosto de espuma.
Convite tão indecoroso quanto “Vamos passear no shóp?”
Eu gosto de chamar os lanches de “jacaré”. “O que você vai comer, Fábio?”, “Vou comer um jacaré de bacon com ovo”.
Eu esperando o i-food.
Para os meus alunos: “E aí turma, hora do intervalo. Vamo comê um jacaré?” Claro que eles sempre estranham. Soa antiecológico, para eles, algo errado, antiético. E nunca riem da piada. Vez ou outra, eu proponho a eles o exercício de imaginação: “se vocês tivessem caído de um avião, e estivessem no mato, há dias passando fome, e tivesse um monte de jacarés, o que vocês fariam?” A resposta invariável é: “eu ia procurar alguma fruta!”. Um aluno disse certa vez: “Vou procurar ninho de passarinho para roubar ovo!”. Tá certo, bem mais inteligente.
Pensando bem, se eu estivesse no mato, com um monte de jacarés e não houvesse mais nada para comer, acho que eu teria pena dos jacarés, afinal, eu sou duro de engolir.
Meus caros alunos podiam ter pensado algo sobre pescar também, mas sem anzol e linha, deve ser mais difícil. Pesca estilo urso, rio só de pensar, rolando de rir, caindo no rio e me afogando. Mas deve ser engraçado também pensar em rolar no chão com um jacaré. Melhor pensar em outra coisa, amor inter-espécies não rola.
Somente os mais velhos, conectados por um fino fio de Ariadne ao passado, acham graça na piada do jacaré-lanche. O que antigamente seria associado a algo grosseiro e selvagem, um jacaré, hoje está associado a um bichinho que está em perigo de extinção, e que não tem a decência nem de servir de matéria-prima de bolsas ou sapatos, como diz o Chico Anysio nesta entrevista para o Jô Soares.
Para entenderem a piada, meus alunos e meus filhos têm que fazer o exercício penoso de imaginação de entrar na cabeça de um quase-idoso (para eles não, já sou um Neandertal). E olhar para um lanche como um jacaré, que para mim, quer dizer um lanche mal-feito, todo montado de qualquer jeito, com um pão francês com cascas se despedaçando da superfície, e queijo caindo dos lados, tudo em cima do papel manilha com que eles eram embrulhados no boteco onde o pedíamos.
Tenho que explicar às novas gerações desse meu Brasil o inexplicável. Explicar a piada do “jacaré-lanche” é como explicar a emoção de se comer um X-Tudo de bacon. “Ué, é X-Tudo, não devia ter bacon já?” Não, né. Tem o X-Tudo de frango, também.
Tipo esse.
Em tempo: não tenho a mínima vontade de comer carne de jacaré. Embora digam que a carne é boa. Tenho uma vontade irracional de comer linguiça de capivara, mas é só vontade mesmo, nunca me mexi um milímetro para buscá-la. Sei até onde encontrá-la, mas vai ficar mesmo na fantasia. Melhor assim. Assim como a carne de jacaré.
Quero não, era brincadeira.
Jacarés dos desenhos, sentimentos confusos e contraditórios sobre desenhos animados antigos. Não recomendo a você, que viveu nos anos 1970 a 1990, assistir de novo a desenhos que marcaram sua infância com seus filhos. Dificilmente uma infância ficará agradada com os desenhos da outra. Meu pai e minha mãe assistiram desenhos animados dos Looney Tunes e de Walt Disney nos cinemas, eu e meus irmãos assistimos aos mesmos desenhos na TV. Nós comungamos da alegria de desfrutar desses desenhos em família, e nos divertíamos.
Não será o caso das gerações seguintes. Fiz a besteira de assistir a alguns desenhos muito marcantes para mim, com os meus filhos. Anunciei a “sessão nostalgia”, fiz a propaganda toda, tentando os seduzir. Minhas lembranças os apresentaram como verdadeiras sagas épicas, como é o caso dos desenhos de He-Man e dos Thundercats. Ou como desenhos engraçadíssimos, de “rachar o bico de tanto rir”, como os desenhos da Hanna-Barbera, e os da Warner, Pernalonga e Patolino.
Vi que envelheceram mal, como eu devo estar envelhecendo. Tão mal como a expressão “rachar o bico”. Eu fiquei mais decepcionado do que eles, que até tentaram me consolar. He-Man é de uma pobreza desgraçada, os roteiros são ridículos, a animação é ainda pior. E as liçõezinhas de moral no final? Arggh.
Piores, somente os “desenhos desanimados” da Marvel. Esses são campeões absolutos em ruindade.
Os desenhos da Hanna-Barbera também são ruins.
Personagens como Dom Pixote, Tartaruga Touché, Leão da Montanha, Wally Gator, Pepe Legal, não passaram mesmo na prova dos pimpolhos. Comparadas às séries animadas de hoje, têm roteiros simplórios, os personagens ficam falando três, quatro minutos, só mexendo a boca. Comum a todas: animação paupérrima, quadros repetidos, cenários repetidos.
Wally Gator foi dublado, no Brasil, por Lima Duarte. Ele mesmo, o ator da Globo.
Eu e minha esposa assistimos com eles meio episódio de “Os Flintstones” (a série original, não os derivados, que são “vergonha alheia” no último grau). Neste caso, o roteiro até que é bom, mas hoje totalmente direcionado para adultos: piadas sobre casamento e casais provaram ser completamente inadequadas para crianças. Não por serem maliciosas, são ingênuas, mas somente casais vão entender a graça daquilo. Um “I Love Lucy” em desenho animado, ambientado na Idade da Pedra.
Eu ainda acho engraçadíssimas as primeiras dublagens do Barney, por Rogério Marcico, e do Fred, por Marthus Mathias.
Alguns desenhos do Pica-Pau ainda que passaram no crivo rigorosíssimo da filharada, quase todos os clássicos da Disney (embora eles gostem mais dos desenhos do Mickey em preto e branco, no que concordo) e alguns dos Looney Tunes. Destes, há uma série recente, da década de 2000, que mostra Pernalonga e Patolino como uma série tipo “Friends”, só que com dois amigos, e não seis. Eu gostei, porque está cheio de gags que só adultos entendem, como em “Animaniacs” e “Freakzoid”, que eles não gostaram; mesmo assim, adoraram esta versão dos Looney Tunes.
Deixo o jacaré do “Vodu é pra jacu” para vocês, um dos desenhos do Pica-Pau que considero, ainda, dos mais engraçados.
Os mais tocados na Oficina do meu pai: Tião Carreiro. Um dos gênios da música brasileira, criador do pagode sertanejo, José Dias Nunes, ou melhor dizendo, Tião Carreiro, era um preferido do repertório da dupla Cebolinha & Cheiro Verde (meu pai e o colega Brair, sócio da oficina).
O “modão” de Tião Carreiro e Pardinho virou modinha entre os universitários, com predominância de alunos de cursos de graduação com campi no interior. Tião Carreiro não tem absolutamente nada a ver com o sertanejo universitário, embora tenha a ver com o universitário sertanejo.
Tião Carreiro era negro. O pagode sertanejo tem raízes fortes em ritmos dos escravos, como o jongo e o samba sertanejo. Antes que me acusem de woke, ou melhor, de eu “jogar pra galera”, não é por isso que a música dele é melhor ou pior. Explico tudo em detalhes à frente.
“Ara Pó”, um jongo de Jose Nunes e Lourival Dos Santos.
O samba e a música caipira são separações artificiais que a indústria do disco realizou no século XX. Acabou por transformar o “samba carioca” calcado na percussão, mas vejam só como o “samba tradicional” como o de Cartola, Nelson Sargento e Paulinho da Viola, tem a melodia como protagonista. O violão é um instrumento de corda que preferiu-se à viola no samba, mas a história não é tão simples, nem acaba desse jeito.
O violão de seis cordas, a viola de doze cordas, o cavaquinho e o bandolim, instrumentos preferidos dos gêneros populares europeus – mazurcas, valsas, polcas, habaneras – juntaram-se aos instrumentos de percussão dos ritmos africanos dos nossos escravizados. A ênfase que se deu ao ritmo ou à melodia, a preferência por este ou aquele instrumento, acabou por caracterizar compositores e arranjadores, primeiro na era das partituras para piano, depois na era do disco e do rádio.
Quando os gêneros foram rotulados, separaram-se sambas sertanejos de sambas cariocas ou baianos, ou os maxixes dos sambas, ou os lundus das músicas ponteadas em guitarras porguesas, das modas de viola caipira com cordas duplas ou dos chorinhos com bandolins. Ou as modas de viola e sambas, dos choros.
Tião Carreiro é genial porque ordenou de maneira diferente vários elementos de um gênero de rádio, a música caipira, que já era sedimentada com vários clichês via Tonico e Tonico, Raul Torres e Florêncio, e outros mais. Embora todos estes tenham sido embalados, uns mais, outros menos, em arranjos que faziam concessões à música de rádio mais popular da época, como tangos, música popular espanhola e italiana (daí a presença da sanfona, que antes não existia na música caipira), fados e boleros, ainda se mantinha a referência à raiz de onde todos tinham vindo, a música com viola, dedilhada, com ponteios - que lembram os solos das guitarras portuguesas dos lundus. Vejam este lundu aqui e me digam se não faz eco aos ponteios das violas caipiras:
Mas, o que fez Tião Carreiro?
Duas coisas:
Primeira: mudou a ênfase das vozes em terça das duplas caipiras. O intervalo em terça é a diferença de duas notas entre uma voz e outra. Se você se interessa pelo assunto, pode ver o vídeo do William Segundeiro Raiz, bem didático:
Desde as primeiras gravações, sempre havia a primeira e segunda voz, sendo que a primeira voz sempre foi a mais aguda, no registro do tenor, a que sobressaía. A segunda voz sempre foi a “do fundo”, mais grave, no registro do baixo.
Normalmente, o cantor da primeira voz cantava a letra “liso” (a melodia principal), agudo. O da segunda voz, cantava uma terça abaixo.
Tião Carreiro cantava “liso”, grave, só que no registro do baixo. Pardinho, tenor, cantava uma terça acima.
E assim, Carreiro sempre fez a segunda voz, que se destacava. Pardinho e os outros parceiros – Coqueirinho, Paraíso, Praiano – faziam a primeira. O melhor deles, no entanto, foi Pardinho, o parceiro mais constante de Carreiro.
Que diferença isso faz? Tião Carreiro tinha a voz grave com uma riqueza e profundidade vista depois somente com Noriel Vilela, do grupo “Os Cantores de Ébano” – sucesso com “Uirapuru” em 1962. Tião Carreiro e Pardinho estouraram com o “Pagode em Brasília”, de 1960. Vilela, porém, não alcançou a relevância nem o peso musical do violeiro (embora tenha feito sucesso com a música “16 toneladas”).
Segunda: o novo ritmo da viola que Tião Carreiro criou. Violeiro de mão cheia, acelerou o toque da catira, inspirou-se no ritmo do cipó preto, juntou tudo com o recortado mineiro (o músico era natural da cidade mineira de Monte Azul), em suas próprias palavras. A catira tinha a percussão que os pés batendo no chão traziam à música, na dança típica. O cipó preto e o recortado mineiro inspiraram a melodia com os ponteados e rasqueado.
No vídeo abaixo, o biógrafo de Tião Carreiro, Leandro Valentin, ensina tudo isto na viola. Caba não, mundão.
Lourival dos Santos (compositor de “Rio de Lágrimas”) e Teddy Vieira (compositor de “Chico Mineiro”, “Menino da Porteira” e outros tantos clássicos da música caipira), trabalhando na gravadora RCA Victor, em São Paulo, ouviram a gravação do novo ritmo em 1959. Tião Carreiro e Pardinho já se apresentavam na rádio Cultura da capital paulista desde 1955. Os dois compositores comentaram: “parece um pagode”, palavra que na época era sinônimo de “festa” (por isso o gênero de samba carioca, associado ao samba, também se chama pagode). Estava batizado então o pagode sertanejo. Logo, gravaram o compacto com “Pagode de Brasília”, em 1960.
Tião Carreiro é um desses artistas que, quando aparece no mundo, chega pronto. Assim como João Gilberto, que quando estourou, já tinha o ritmo da Bossa Nova todo no violão. Ele, quando explode em sucesso, já tinha o “pagode sertanejo” posto em bandeja para nosso desfrute. É assim com o compacto que trouxe “Pagode em Brasília”, que depois seria estrela no primeiro LP.
“Pagode em Brasília” pode até ser oportunista na letra, pois aproveita o assunto do momento, a inauguração da nova capital federal para chamar a atenção, mas vai muito além de uma musiquinha da moda – junta os talentos dos letristas de Teddy Vieira e Lourival dos Santos com o novo ritmo das dez cordas. “Nove e nove” e “Minas Gerais” também mostram a habilidade dos três criadores. Parceria tão icônica quanto a de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, ou a de Erasmo e Roberto Carlos.
Vale dizer que a faixa-título, “Rei do Gado”, uma moda de viola mais tradicional, com ponteado acompanhando os versos, de autoria-solo de Teddy Vieira, tornou-se canção obrigatória no repertório de qualquer cantor sertanejo que tenha ligação com suas raízes.
Noites e noites com os “modões” de Tião Carreiro embalaram a minha infância, não tanto com o ponteado da viola – os happy hours da oficina do meu pai não tinham músicos mais habilidosos que Cebolinha & Cheiro Verde, cuja habilidade era segurar no gogó “Boiadeiro Punhos de Aço”, “A Coisa tá feia”, “Boiadeiro de Palavra” (machista até a raiz do cabelo) e “Rei do Gado”.
Em casa, a vitrola tocava “Ara Pó”, “Amargurado”, “Hoje eu não posso ir”, “Empreitada Perigosa”. Esta última, tinha os versos, que como tantas outras modas, contavam uma história que, para mim, era fascinante:
Já derrubamos o mato / Terminou a derrubada / Agora preste atenção / Meus amigo e camarada / Não posso levar vocês / Na minha nova empreitada / Vou pagar tudo que devo / E sair de madrugada...
E mais adiante:
Eu vou roubar uma moça / De um ninho de serpente / Ela quer casar comigo / A família não consente / Já me mandaram um recado / Tão armado até os dentes / Vai chover balas no mundo / Se nóis topar frente a frente...
“Vai chover bala no mundo” é uma das imagens mais engraçadas, e pitorescas, que eu conheço.
Que dizer mais?
Se quiser ouvi-lo porque gosta de música caipira “raiz”, ouça. Ou se faz questão de ouvir música brasileira.
Se quiser ouvir uma viola caipira bem tocada, ouça.
Se quiser poesia com a alma do povo, enganosamente simples, mas feita com Engenho e arte, ouça.
Se quiser ouvir o caipira com toda a sua nobreza de alma mas também com suas misérias, ouça.
E se quiser ouvir Tião Carreiro também por ter sido negro, ouça.
Coloque seus preconceitos de lado, quais forem, e ouça Tião Carreiro. Vale a pena.
ANTES DE ME DESPEDIR,
GOSTARIA DE UM POUCO DA ATENÇÃO
DAS DAMAS E DOS CAVALHEIROS AQUI PRESENTES.
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Se não gostou, enfie uma lagartixa de verdade numa mensagem do Whatsapp, para aquela namorada que se casou com um cara mais rico que você. Se você é a namorada, pode rir por último, porque esse fracassado nem tem o seu número.
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Uma assinatura tem o preço bem menor que um jacaré, ops, um lanche do Méqui. Não compra um bolovo de rodoviária, mas auxilia o franguinho na panela das crianças.